quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Café de Lama

Um conto nordestino baseado em fatos reais

É final de ano na segunda metade dos anos oitenta. Faz tempo que não chove e o calor está cada vez mais causticante. Estamos em Poço Redondo, Sergipe, num lugar chamado Barra da Onça.
A vegetação magra e contorcida sentindo a dor da longa estiagem, deixa cair grande parte de suas folhas como que se despindo para suportar a quentura. O mandacaru perde sua turgidez e seus espinhos são como verdadeiras armas prontas para defendê-lo, embora a agressão maior venha do próprio solo e do próprio ar, cada vez mais quentes e mais secos. O clima, nessa região, não fosse o machado e a foice nas mãos do homem, seria o maior inimigo da flora sertaneja.
O verde pouco a pouco vai desaparecendo e dando lugar ao vermelho alaranjado do pó da terra que se espalha com o vento, tingindo a pouca folhagem ainda existente. Aqui e ali um juazeiro se mantém verde, uma das raras espécies que resistem à tamanha agressão, ponteando a região como que de minúsculas ilhas de vida, gotas de sombra e beleza para este lugar tão esquecido e desprezado.
A fauna adaptada sobrevive de migalhas e a natureza premida busca o equilíbrio. A água é o carro chefe da carência. Os animais silvestres buscam a sobrevivência até nas axilas de cactos que armazenam o orvalhar das auroras. Para o homem e para os animais domésticos a dificuldade é maior pois maiores são, ao menos em quantidade, as suas necessidades. Alguns barreiros, que armazenavam águas caídas no curto período chuvoso pretérito, já estão quase exauridos, com suas margens já rachadas pela ressecação do solo, mantendo ao centro um pouco de líquido lodoso, salobro e insalubre que, bem ou mal, ainda dessedenta os animais e o próprio ser humano.
São mais de seis mil hectares de terra adquiridos pelo governo para assentar pouco mais de duzentas famílias de sertanejos. Duzentas famílias de um povo rude, de mãos calosas pelas duras lidas ao cabo de suas enxadas. Homens e mulheres quase que adaptados a viver sem água e sem pão. Criaturas que lutam grande parte de suas vidas na esperança de melhorá-las e morrem sem perder a esperança, deixando-a como herança para a prole numerosa que entra na roda e perpetua o ciclo.
Essa esperança, nutrida pela fé, é quem gesta nessa gente a alegria de viver, tornando-os humanos, receptivos, festivos e solidários. Brincam, cantam e dançam como se a vida fosse boa, como se chovesse com regularidade, como se a barriga estivesse cheia.
O Governo já tomou posse da terra.
Os futuros donos já estão nela, mas isso é só o começo. É o fim da luta pela terra e o começo da luta pela sobrevivência. As famílias se espalham pela imensa caatinga, fazem picadas, abrem clareiras, constroem barracos, marcam território. O preá, pequeno roedor nativo, é o alimento e fonte protéica mais importante. Com o desmatamento e as queimadas eles aparecem aos borbotões. São caçados, mortos, salgados e secos ao sol para garantir o alimento futuro.
Mas é preciso organizar e controlar o parcelamento e para isso vêm os homens do governo.
O sol já se verticalisa no firmamento e o calor é quase insuportável quando o carro para na margem da rodovia.

− Faça a volta e nos aguarde do outro lado, na sede velha da fazenda.

Com essa recomendação ao motorista, os dois funcionários se embrenham na caatinga para efetivar a tarefa a que vieram. Com prancheta e lápis vão rabiscando o que lhes interessa. A vegetação, o relevo, as linhas de drenagem, as trilhas abertas. Tudo vai configurando um esboço para um futuro projeto de parcelamento da área, processo já desencadeado pelos próprios ocupantes, ante a vagareza da ação pública.
Aqui e acolá, uma clareira, um barraco, uma família. O cenário é simples. A beleza convencional passou distante. A “casa” é construída de restos e de ramas: pedaços de papelão, de madeira, de flandres, de plástico e galhos ou ramos da caatinga erigem as paredes que formam um único vão. O “telhado” é de palha e ramagens. O piso é o próprio chão. Do lado de fora, troncos e pedras fazem a mobília. Três ou quatro pedras inteligentemente dispostas sob três varas amarradas em forma piramidal, onde se dependura a panela, constituem o fogão a lenha. Ali se cozinha o feijão, o preá e se prepara o forte café. Os primeiros, com a farinha de mandioca, matam a fome ainda que de forma minguada. Este último, além de tradicional costume, torna mais prazeroso o pitar daquele cigarrinho de fumo, hábito comum dessa gente sertaneja.
Comum também é sua hospitalidade. Do seu jeito e na sua simplicidade, recebem melhor que muita gente importante da cidade grande.

− Bom dia, “dotô”, sente um pouco pra descansar as pernas.

− Demore um pouco aqui na sombra, o calor ta demais!

Essas e outras semelhantes saudações eram ouvidas com freqüência. E vinham as perguntas sobre o porquê daquele trabalho. As justificativas de suas atitudes. Os pedidos de socorro, de apressamento das ações para aplacar-lhes o sofrimento. E eles iam, ao mesmo tempo, respondendo as perguntas e colhendo informações que lhes facilitassem o trabalho.
O dia já descamba para o início da tarde, o que é sentido pelo amenizar, ainda que ínfimo, do calor quase intolerável de antes.
Mais uma clareira, mais um barraco, mais uma família.
O fogo já ardia entre as pedras do fogão improvisado e uma panela pendia da pirâmide de varas. Era um utensílio de alumínio amarrotado por quedas e pancadas, externamente enegrecido pela ação do fogo e da fumaça por anos e anos. Era, possivelmente, o preparo do café para a refeição vespertina, que beberiam com cuscuz de milho antes da escuridão da noite.

− Boa tarde, “dotô”, cheguem pra cá, vamos sentar. Tão na lida?

− É. E vocês, como é que vão?

− Estamos aqui sofrendo com esse calorão, esperando que o governo adiante pra nós algum refrigério. A coisa não ta muito boa e se não fosse os “preá” nós tava era passando fome. Mas sentem aí; vou mandar a mulher trazer um café pra vocês.

− Não precisa. Nós estamos de passagem e o carro está nos aguardando lá na sede velha. E não queremos deixar escurecer. Fica para outro dia.

− De jeito nenhum; não vai demorar nada. Olha lá, a água já ta fervendo! Café aqui não falta e é do bom. E pra vocês queimar um cigarrinho num tem nada melhor. Daqui pra escurecer ainda falta mais de duas “horas de relógio”.

Com tantas gentilezas, resolveram aceitar. Sentaram-se e rolou conversa. Estórias e anedotas trouxeram boas gargalhadas. O dono da casa era um senhor de meia idade, muito trabalhador e astuto. Era querido pela comunidade e pelos técnicos, dado o seu espírito de liderança e por ser prestativo. Estava sempre disponível para dar informações e colaborar no que lhe fosse possível. Além disso, parecia estar sempre de bem com a vida.
Não tardou e veio o esperado café. Veio em canecas de louça grandes e de paredes espessas cheias até o limite. Era muito café. Esperavam um cafezinho mas.... Era forte, encorpado, um pouco exagerado no açúcar, mas não se podia falar que era ruim, ao contrário, até que estava bom.
Após degustarem o saboroso líquido, com goles entremeados das conversas que prosseguiam, vieram os agradecimentos e as despedidas. Apressavam-se, pois o tempo passou rápido e o sol já pendia na linha do horizonte.

− A conversa foi boa, o café foi melhor mas estamos indo. Amanhã estaremos por aqui de novo para continuar o levantamento.

− Ta cedo, pessoal. Passem aqui amanhã pra gente continuar a prosa e tomar outro café.

− Não sei não, se der a gente passa, ta bom? Estamos indo.

− Ah, “dotô”, que mal pergunte, o senhor já tomou café de lama?

− Não. Claro que não.

− Agora já!!!

Veio à mente a lembrança da paisagem visualizada no decorrer do dia. A vegetação seca e empoierada, as trilhas abertas na caatinga e, principalmente, os barreiros já aqui descritos, quase secos, com as margens rachadas e na área central de maior depressão, um resto de água lamacenta onde jumentos e vacas entram para sugar um pouco daquele liquido e amenizar suas sedes. Era desses mesmos barreiros que tiravam a água com a qual fizeram o café.
A boca encheu d’água, o estômago embrulhou, riram um sorriso amarelado, cuspiram, ascenderam um cigarro e seguiram o caminho rumo à viatura que os aguardava.
Afinal, se eles estão vivos e felizes, por que não sobreviveriam também? Não somos todos iguais?
Seguiram alegres e até hoje relembram sorrindo a história do “café de lama”. Mais uma história do sertão nordestino.

dezembro/2009
Geraldo Souza

2 comentários:

  1. Muito bom. "Não só de pão vive o homem", de lama também.
    Parabéns. Um abraço.

    Cirano Albino.

    ResponderExcluir
  2. É, logo de cara, ao nos depararmos com "bebeu café de lama" dá agonia, mas quando pensamos na vida que eles levam a gente entende e pode mesmo dizer: "se eles estão vivos e felizes, por que não sobreviveriam também? Não somos todos iguais?"... pra variar divulgarei este texto...continue publicando hein!?!

    ResponderExcluir